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O cooler, a criança e a segurança de ser.

A importância do apoio para o desenvolvimento de pessoas seguras e corajosas.





Recentemente estive em um evento social na presença de Isaac, dois anos de existência na Terra. Isaac é uma criança tranquila, decidida, interessada e - o que me chamou mais a atenção - livre.

Ele não é só livre pra correr pela casa com o controle remoto da televisão na mão, é livre para explorar o mundo e construir uma ideia de si a partir dessa grande aventura.

Estávamos lá a mãe dele e eu, cada uma em uma cadeira. Entre nós, um cooler (que quando eu era do tamanho do garoto consistia em uma caixa de isopor) com sua tampa fechada. Para travar a tampa de um cooler dos tempos de Isaac, é necessário passar a alça para um lado. Se soltar a alça sem atenção, é dedo preso com toda certeza. Mas para ele isso não é um problema, e ele experimenta. Abaixa a alça devagar e olha pro dedo sendo preso aos poucos. Pára quando sente dor e escolhe outro jeito de brincar com o objeto. Quando se anima demais e solta a alça muito rápido, uma mágica força do universo (chamada Aline, a mãe) impede o dedo de ser esmagado. Com exceção destes casos, Isaac é livre para experimentar.

Ele se cansa de mexer na alça e abre a tampa, mexendo na água com gelo que mantém a temperatura da cerveja agradável. Pega uma lata e entrega para uma tia, uma outra entrega para um tio. Escolhe uma e o pai pede pra que ele troque, pois prefere outra marca. Ele não entende de marca e nem sabe que aquela lata gelada vai ser uma bebida para aquele homem que ele ama, mas troca. Acha divertido ir, voltar, molhar a mão, segurar a lata gelada. Quando cansa, fecha a tampa e sai andando tranquilamente.

Assistia a brincadeira exploratória da criança e pensava sobre o que faz com que nós possamos desenvolver a habilidade de experimentar livremente. Será que existem livros com técnicas para aumentar a capacidade exploratória que realmente demonstrem tantos resultados quanto abrir e fechar um caixote de gelo e latas? Em qual momento desenvolvemos essa aptidão, e mais, será que existe um tempo limite de vida para aprender essa habilidade? Dá pra ser livre como ele é? O que faz com que ele possa confiar em sua ação?

Enquanto divagava por estes pensamentos, o menino volta da sala, sobe no cooler e sem pestanejar estende as mãos para a mãe e para mim, as duas pessoas mais próximas. Quando seguramos suas mãos, ele pula e ri alto. Isaac me ensinou, naquele evento, que para ser livre precisamos experimentar a segurança de uma mão, de ter onde nos apoiar. Aprendi com Daniel Calmon, educador somático, que o apoio precede o movimento. O conceito é de Mark Taylor, mas foi com o suporte da mão do Daniel que pude entender seu real significado, assim como Isaac pôde contar com minha mão e com a de sua mãe para brincar de salto. É no apoio que aprendemos que podemos abrir espaço e explorar o mundo com os olhos, as mãos, o coração. A partir de uma referência de segurança, podemos criar confiança interna. E olhando a criança em seu brincar, pude ver que se faltasse a mão da mãe apoiando a alça caída, ele possivelmente se machucaria, talvez se retraísse possivelmente não buscasse mais o cooler para brincar, perdendo a oportunidade de subir, pular e voar. Uma vivência inteira interrompida por falta de apoio.

Se somos seres em relação com o mundo, com outros, então não nos será impossível a busca de um apoio, ainda que não tenhamos mais os dois anos que o garotinho tem. Penso que se esticarmos as mãos e abrirmos os olhos, encontraremos mãos que nos segurem para pularmos. Falo de forma simbólica, mas em alguns momentos de forma concreta também. Caso não sinta que tem essas mãos ao redor, não desista. Estou aqui para te apoiar, assim como Daniel está por mim e como Aline e eu estamos para Isaac. Procure-me.

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